Marcas, capítulo 1

1
Março, 2007.

   Era uma manhã de segunda-feira, e de fato já acordara havia uns quarenta minutos, mas a fatiga mental não me deixara levantar. Estava totalmente atirada na cama, debruçada, braços e pernas esticados, com meu edredom azul turquesa cobrindo até as minhas orelhas. Eu não estava pensando em nada, mas tudo girava na minha mente. Minha cabeça embaralhava informações, e depois, não sabia exatamente o que fazer com todas elas. Eu estava enlouquecendo. Naquele exato dia, faziam cinco anos desde o acontecido. Cinco anos de uma falta que me disseram que o tempo curaria. A saudade a essas alturas, já era como um abismo onde a gente grita por socorro e tudo o que recebe são ecos do próprio desespero. Mas por mais que aquelas lembranças e marcas me torturassem dia após dia por todos aqueles anos, era preciso me levantar da cama; meus fantasmas não tinham o poder de me atestar perante a vida, ela continuava lá, imponente e exigente todas as manhãs.
   - Natalie, levanta e vem tomar café da manhã, preciso da sua ajuda hoje.
   - No meu último dia de férias? - Minha preguiça incontrolável alimentava o meu ceticismo sobre o fato. - É sério?
   - Poderia ser pior. - Sua voz vinha da cozinha, o que supunha que a ajuda envolveria comida. E isso sempre fizera qualquer esforço valer a pena. 
   - Sempre pode.
   - Então levanta!
   - Argh, o que eu não faço por você hein?
   - Boa garota. - Disse ela com tom debochado.
    Levantei-me, abri a janela, olhei pro céu. O dia estava ironicamente ensolarado e inspirando crianças a brincarem na rua. Crianças com a idade que eu tinha quando ele se foi. Fechei as cortinas. 
    Conectei o computador às caixas de som, música ainda tinha o poder de abafar barulhos internos. Pus a camiseta da minha banda favorita, meu short jeans de lavagem clara, e meu all star branco. Penteei meus cabelos, e dei uma sacudida, pra que ficassem com movimento já que eram tão lisos. Lavei o rosto na tentativa de acordar para o real, para a Natalie que estava ali diante do espelho, e não a de cinco anos atrás. Tudo parecia em vão. Mas eu era forte, não era o que eu acreditava, mas era o que eu fazia os outros acreditarem, afinal, quem somos nós além daquilo que constroem a nosso respeito?
   Estava me maquiando quando uma onda de ansiedade me invadiu. Uma sensação estranha e intimidadora de que algo novo aconteceria. Sentei-me e respirei fundo, tentando acalmar os ânimos. Espiritualistas chamariam isso de intuição. Eu preferia acreditar que era meu psicológico perturbadamente desgraçado me enlouquecendo.
   Só estávamos eu e minha mãe em casa. Meu irmão mais novo, John, estava na escola, suas aulas começaram mais cedo. Mamãe estava de férias. O escritório de advocacia e seus casos a estavam deixando louca, suas férias adiantadas foram questão de necessidade.
   - Bom dia mãe. - Disse me aproximando da cozinha, avistando a mamãe usando avental enquanto lavava alguns copos.
   - Bom dia filha, dormiu bem?
   - Dormi. –  Falei apenas pra que ela não sentisse aquela preocupação assídua de mãe, já que eu só havia conseguido dormir depois das cinco da manhã. Preferia enfrentar as minhas emoções sozinha do que ter de sobrecarregá-la com mais esse peso, o que ela carregava já era o suficiente. Fechei o rosto e baixei a cabeça. -  Hoje fazem cinco anos né?
   - Sim minha filha, fazem cinco anos, e sem dúvida ele faz muita falta. – Ela falou isso tentando manter a suavidade nas palavras, escondendo o desespero, mas seus olhos não deixavam nada escondido, ela estava desesperada sim.
   Minha mãe muitas vezes se escondia para não chorar na nossa frente, e por muitas madrugadas ao me levantar para ir ao banheiro podia ouvir os soluços do seu choro. Ela ainda sofria muito pelo que aconteceu e isso tornavam as coisas ainda piores pra mim. Um vazio silencioso se estendeu, ela levantou a cabeça me analisando por uns instantes, como ela sempre fazia, e quase sempre isso me deixava irritada. Mas não naquele dia.
   - Filha, eu fiz o café da manhã recuperando as nossas origens. – Disse ela rompendo o silêncio e recuperando um leve sorriso. Ela tinha preparado um legítimo “breakfast” norte americano; panquecas, suco, omelete, bacon, e todas aquelas coisas que alimentam a obesidade estadunidense.
   - Essa cultura americana vai acabar com o meu corpo. – Disse em tom de brincadeira, tentando desfazer o clima de luto que havia pairado no ar. Aliás, a comida dos EUA podia causar o que fosse, eu continuaria amando o país. – Senta aqui comigo mãe, vamos ficar obesas juntas.
   - Tudo bem, se você não se importa em ficar ao lado de uma americana obesa.  – Aquilo soava como deboche, ela tinha quarenta e sete anos, mas estava muito em forma para uma mãe de dois filhos. Ela era americana, mas jamais obesa. – Me passa o melado das panquecas, por favor.
   Comemos, rimos, e desta forma nos distraímos à mesa. Isso foi ótimo, tanto pra mim quanto pra ela. Sabia que ficar comigo e com John era a maneira dela de calar um pouco a saudade que sentia do papai, por isso tentava fazer desses momentos os mais felizes na medida do possível.
   - Mas então mãe, o que vai querer que eu faça hoje?
   - Preciso que você vá pagar as contas de água e de luz, passe no mercado e compre bacon, mas esteja em casa às 10h30. Preciso do bacon pra fazer um prato novo que aprendi, e o seu preparo é meio demorado.
   - Mãe, são 9h00, não vai dar tempo de eu chegar até as 10h30! O mercado deve estar cheio, e os caixas com filas enormes. E a fila pra pagar as contas também deve estar gigante! – Disse com os olhos um pouco arregalados, isso sempre acontecia quando eu contestava alguma coisa.
   - Dá tempo sim, é só não caminhar no ritmo de tartaruga paralítica como você é acostumada a fazer, – Disse ela sorrindo de canto. – nem ficar paquerando os garotos na rua.
   Odiava aquele tipo de piada, e minha mãe sabia disso. Ela sabia que eu nunca "paquerava" ninguém, aliás nunca havia namorado ninguém. Desde o acontecido minha vida tinha se tornado corrida demais pra me ocupar com qualquer tipo de futilidade do gênero. Sentia que ela se preocupava com isso, a cada discurso que fazia sobre aproveitar a juventude.
   - Mãe, me passa o dinheiro, e não me faz mais ouvir esse tipo de piada de novo, por favor. - A expressão tediosa em meu rosto dizia tudo.
   - Toma, está aqui. - Ela me entregou as contas e o dinheiro enrolado. -  Traga o troco, por favor.
   Levantei da mesa, já tinha acabado de comer. Saí acenando um "tchau", pus meus fones de ouvido bem altos, e caminhei com o passo bem acelerado, quase no ritmo do power metal que escutava. Fiquei ofegante porque, me desculpem padrões de qualidade de vida, mas eu sempre fui sedentária.  Fiquei pensando em tantas coisas enquanto via as pessoas, os carros e os animais passarem, que me perdi dentro de mim mesma. De repente tive aquela sensação de ansiedade novamente. Uma sensação de algo mudaria. Sacudi a cabeça tentando evitar qualquer tipo de intuição maluca, ou sei lá como poderia chamar isso.
    - Natalie, você está enlouquecendo. - Sussurrei.

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