Capítulo 4, Marcas.


4

   Acordei ainda sonolenta como de costume, mas animada e feliz. Levantei com o rádio relógio tocando uma música ruim, mas tudo bem, nada seria capaz de estragar meu dia.
   Pus a blusa da escola, um short jeans de lavagem clara cheio de rasgadelas, e meu all star azul. Me maquiei, passei um pouco de perfume e penteei os cabelos com o devido cuidado de todos os dias. Tomei suco de uva natural que a mamãe havia deixado de antemão na garrafa, comi uns biscoitos amanteigados, escovei os dentes e parti em direção à escola. Dessa vez sozinha, caminhando tranquilamente, sem música porque tinha esquecido os fones de ouvido em casa, e quando eu percebi isso já não tinha ânimo pra voltar e buscar. E bem, de fronte aos últimos acontecimentos, era bom pra ouvir meus próprios pensamentos. 
   No alto da minha distração, uma moto parou ao meu lado. Fiquei assustada, muito assustada. A cidade era pequena mas não dava pra brincar com a sorte, até mesmo cidades pequenas tem seus perigos e riscos. O medo deu lugar ao nervosismo e felicidade assim que o dito motoqueiro abriu a viseira do capacete, abrindo seu sorriso jeitoso e deixando-me ver seus lindos olhos azuis.
   - Bom dia Natalie, - Ele falou sorrindo. - que ótimo te ver. Estou indo pra loja, quer carona até a escola?
   - Nossa vocês abrem cedo assim? - Tentei assimilar as coisas.
   - Normalmente não. É que hoje eu tenho que organizar a loja para a chegada das novas guitarras às nove. Mas então, vai querer a carona?
   - Ah, não sei se é seguro Victor. – É claro que era seguro, nunca tive medo de nada que subisse o meu nível de adrenalina. Mas eu não precisava ser assim tão fácil, não é mesmo?
   - Claro que é. - Ele fez uma pausa me olhando levadamente. - O que foi hein mocinha? Estás com medo de mim agora? – Seu sorriso de criança levada ficava ainda mais bonito sob o sol da manhã.
   - Claro que não, eu não tenho medo de nada. – Ele havia me desafiado.
   - Então me prova! – Falou desligando a moto, apoiando-a e pegando o outro capacete. - Vamos? Eu prometo que estás segura comigo, sou ótimo motorista.
   - Ok, tudo bem. – Tentei demonstrar segurança, só não estava certa sobre ele ser um bom motorista.
   Peguei o capacete e coloquei. Subi na moto e segurei o pega mão atrás de mim.
   - Você estará mais segura se me abraçar. - Ele disse com a voz abafada dentro do capacete.
   Eu bem sabia que o pega mão tinha o mesmo nível de segurança, mas não resisti ao convite. Ah, como eu queria que aquele momento se eternizasse! Quando ele virou a chave e acelerou, foi como uma breve visita ao país das maravilhas. O vento balançava a parte dos meus cabelos que haviam ficado para fora do capacete, e trazia o perfume de Victor até mim. Abraçá-lo era tão reconfortante. Ele olhou para trás umas duas ou três vezes, olhando diretamente aos meus olhos, como se tivesse o poder de me hipnotizar através do azul de seus olhos. 
   Quando chegamos na frente da escola, os meus amigos estavam todos na frente do portão, e eu tinha a absoluta certeza que haveria um interrogatório e uma série de desconfianças assim que Victor fosse embora.
    Desci da moto, tirei o capacete e o entreguei, pondo-me a arrumar minha franja. Ele tirou o capacete também, desceu da moto, passou a mão nos cabelos de um jeito despojado sem muitas arrumações, e sorriu.
    - Eu disse que ficaria segura comigo. – De novo aquele sorriso levado surgia em seu rosto.
    - Obrigado pela carona, seu idiota. - Eu ri, tentando esconder o quanto estava sem jeito.
    - De nada. Tomara que eu tenha a oportunidade de te dar carona mais vezes. - Eu apenas ri, encabulada.
   - Adoro quando você fica assim.
   - Assim como? – Perguntei com cara de desconfiança.
   - Encabulada, fica linda. – Ele alinhou um sorriso sedutor e cheio de confiança em seu rosto, o que o tornou mais bonito ainda.
   - Victor, para de ser besta. - Não sabia o que responder, mas aquilo me deixava estranhamente feliz.
   Fomos interrompidos pelo sinal da escola.
   - Bom, eu tenho que ir, se eu não quiser levar uma advertência da professora. – Pensando nisso fiquei meio envergonhada, me sentindo uma criança perto de Victor, e desanimei.
   - Tudo bem, então.
   - Beijo, e até mais. – Falei sorrindo, tentando ser ao menos simpática.
    Ele me segurou pela cintura, me olhou nos olhos me deixando estática e sem reação. Foi quando percebeu que estava indo rápido demais, e desviou sua atenção para a minha bochecha, me dando um delicado beijo no rosto.
   - Te vejo mais tarde.
    Ele subiu na moto, pôs o capacete, pendurou o que eu usara no guidão, arrancou a moto e foi embora. Quando olhei para o portão, Anna e Liza disfarçaram mexendo nos cabelos e se entreolhando, mas logo eu entendi que elas estavam cuidando a cena toda.
   - Oi suas vacas, o nome dele é Victor, é meu amigo, guitarrista que vai tocar comigo na loja. Ele é filho do dono da nova loja de música, e não, não estamos namorando, ele apenas se ofereceu gentilmente para me dar uma carona.
   - Nem te perguntamos nada, – Disse Anna. – você que saiu se explicando.
   - Mas vocês iam perguntar, então evitei a fadiga de vocês.
   - Mas aquilo lá não foi "só amizade" não hein Natalie Lewis, te conheço muito bem, você está escondendo alguma coisa da gente. E ainda mais com o atendente bonitão da loja de música, bem que Anna falou que você desencalharia. – Disse Liza, desconfiada, e debochada. – E eu nem ia te perguntar nada.
   - Duvido que vocês não iam perguntar, conheço vocês como a palma da minha mão. – Fiz uma pequena pausa enquanto elas me encaravam desconfiadas. - Tudo bem talvez Liza esteja certa, talvez tenha algo entre nós dois, mas...
    Resolvi falar alguma coisa, só pra me aliviar do peso do sentimento de traição por não ter contado nada sobre Victor. Me arrependi quando fui interrompida por um turbilhão de perguntas.
    - Vocês ficaram? – Perguntou Anna. – Você está gostando dele?
    - Não, nós não ficamos Anna. E eu conheço ele a pouco tempo, é cedo demais pra se dizer se existe algum sentimento ou não. E agora vamos pra sala antes que tenhamos que levar um xixi da professora.
    Elas não estavam convencidas, mas seguimos andando em direção à sala de aula.
    - Quantos anos ele tem? – Liza super curiosa, como de praxe. – Porque pra estar dirigindo tem que ser de maior.
    - Tem dezenove Liza, dezenove anos.
    - Não acha ele meio velho pra você? – Disse Liza, preocupada. – Ah sei lá né.
    - Liza, eu prefiro um de dezenove que tenha a cabeça no lugar e seja legal como o Victor, do que um da minha idade babaca que só queira se divertir as custas de uma garota.
    - Está apaixonada, – Disse Anna rindo. – está escrito na sua testa.
    - Não estou apaixonada, agora andem duas antas.
    Meus sentimentos por Victor eram claros, mas realmente era cedo pra dizer qualquer coisa, poderia ser um devaneio desse meu coração louco. Ou não.
     Elas não quiseram mais insistir no assunto, sabiam que eu não daria o braço a torcer. Entramos na sala e logo em seguida a professora de Filosofia entrou.
    - Boa tarde alunos, meu nome é Mary, serei a professora de filosofia de vocês durante este ano. Hoje eu quero conversar um pouquinho com vocês sobre inspiração. Eu vou chamar cada um pelo nome da chamada, e vocês vão se apresentar, e falar o que inspira vocês no dia a dia, pra nos conhecermos e não perdermos tempo.
    E assim ela o fez. Chamou um por um. Eu odiava aquilo, odiava ser o centro das atenções.
    - Natalie Parker Lewis
    - Eu, professora! Sou Natalie, tenho dezesseis anos, e não sei o que me inspira.
    - Ah, o que inspira a Natalie devem ser aqueles olhos azuis do garoto que veio trazer ela na escola hoje. – Disse Denise, uma garota com quem eu não conversava muito. Me senti envergonhada e baixei a cabeça tentando esconder o rosto enrubescido. – Garota de sorte hein. – Ela falava de um jeito debochado que me agoniava.
    Parte da turma riu, consentindo.
    - Não, não é isso, ele é apenas um amigo. – Falei tentando manter a calma. Pensei em uma resposta digna, até que resolvi abrir a boca. - O que me inspira é tocar bateria sentindo cada batida movimentar meu coração. É abrir a janela todas as manhãs e perceber que o sol ainda está lá, esperando o seu primeiro passo em relação a vida que te espera no novo dia.
    A turma ovacionou a resposta. Me senti em um  talk show.
    - Inspiradora a sua resposta Natalie. Muito bem, prazer em conhecê-la.
    - O prazer é meu professora. – Falei ironicamente, mas acho que ela não percebeu.
    O resto da aula foi incrivelmente entediante. Quando o sinal da saída soou, peguei a mochila e parti em passos acelerados de tanta ansiedade. Ao chegar em casa, larguei a mochila no primeiro canto que enxerguei e sentei-me à mesa para almoçar.
    - Filha está tudo bem? – Minha mãe perguntou com uma expressão preocupada. – Parece nervosa.
    - Está sim mãe, eu só estou um pouco ansiosa pra tocar hoje na loja.
    - Isso tem algo a ver com o garoto que vai tocar com você? - Mamãe tipicamente desconfiada.
    - Para de bobagem mamãe, eu vou tocar, não existe coisa melhor do que isso. – Falei baixando a cabeça pra que minha mãe não percebesse a mentira em meu olhar. Ela parecia ter dons especiais para isso as vezes.
    Comecei a pensar na volta de moto com Victor pela manhã, e subitamente incluí aquilo nas melhores coisas da vida, e isso era de certa forma assustador.
    Ao terminar de comer, tomei um banho, pus uma blusa preta com as mangas rasgadas que eu amava, um short jeans desfiado e meu all star vermelho. Dei uma conferida no espelho pra ver se tudo estava em ordem. Me garanti no perfume, e fiz a maquiagem. Eu estava nervosa por um garoto. Essa não era eu. Ou era apenas uma versão de mim que eu ainda não conhecia.  
    - Tchau mãe, tchau pirralho, até mais tarde.
    - Tchau filha, – Disse minha mãe sussurrando. – vou passar na loja mais tarde pra comprar o violão do John, o aniversário dele é amanhã e é o que ele mais quer.
    - Tudo bem mãe, nos vemos mais tarde então. – Disse sussurrando também.

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