Capítulo 2, Marcas.

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   Cheguei ao setor de cobranças pra pagar a conta. A fila estava enorme e já eram 9h20 no relógio do meu celular. Fiquei esperando na fila até 9h50, quando me dei conta de que só tinha um rapaz alto na minha frente. Ficaria aliviada, se o atendimento não estivesse demorando tanto. Olhei no relógio novamente, 9h55. Não podia mais esperar.
   - Ei, com licença, posso... - Quando ele virou-se, engoli todas as palavras que poderiam sair da minha boca naquele momento. Seus olhos azuis refletiram sob a luz do sol que penetrava por entre as janelas, sua pele branca e seus cabelos escuros faziam um contraste perfeito. O rosto bem desenhado, combinando com sua estrutura física inexplicavelmente em forma. Ele era inacreditavelmente lindo. Sem mais explicações. Usava uma camiseta preta gola vê, uma calça jeans um pouco justa e um all star branco igualzinho ao meu, só que claro alguns números maiores. Talvez 42, pensei, enquanto tentava recuperar os butiás caídos do bolso. Um estilo simples, que parecia encaixar perfeitamente no conjunto da obra. Quando percebi estava encarando-o estática.
   - Moça, o que você estava falando? – Disse o dom Juan anônimo parecendo um pouco assustado, mas não era pra menos, uma louca o estava encarando. Se bem que com tamanha beleza, ele já deveria estar acostumado com esse tipo de comportamento.
   - Ah me perdoa, – Voltei a realidade como um estalo de dedos tira alguém do transe hipnótico. – é que eu estou muito atrasada, e eu queria saber se você poderia por favor deixar eu passar a sua frente.
   - Claro, - Senti ele me olhar dos pés a cabeça, e tremi subitamente. - pode passar, eu não me importo. – Disse sorrindo, por fim... por fim da frase e da minha sanidade, porque que sorriso lindo! Alinhado e bem ajustado de acordo com o seu rosto.
   - Muito obrigada. – Eu disse com a voz meio embargada, recuperando o tom natural da pele que havia enrubescido sem que eu percebesse. 
   Segui em frente, paguei as contas, mas não conseguia evitar olhar pra trás, notando o tal rapaz de cabeça baixa, mexendo no celular. Por algumas vezes nossos olhares se encontravam, e eu rapidamente disfarçava olhando pra frente, amedrontada. Quase esqueci o troco, ainda bem que a moça que me atendera, me lembrara dele. Virei as costas dando alguns passos em direção à porta.
   - Tchau. – Disse ele, abrindo aquele sorriso novamente. – Espero te ver mais vezes.
   - Tchau, – Eu disse com simpatia, mas confesso que sem saber como reagir. – e mais uma vez obrigada.
   - Não por isso, quando precisar, às ordens.
   Eu apenas ri, e não saiu mais palavra alguma da minha boca,  acenei e fui embora. Senti seu olhar me acompanhar até o momento em que não havia mais como me enxergar. Como aquilo havia me impressionado tanto? Comecei a barrar meus pensamentos, afinal, eu não sabia sequer o seu nome. Além disso, aquilo não era do meu feitio, era tão... bobo. Já tinham confusões demais em minha mente, e eu não precisava de mais uma. Definitivamente.
   No caminho do mercado, encontrei um rapaz, cujo o nome todos conheciam: Julio, mas ninguém sabia absolutamente nada sobre o tal. Me surpreendi ao ver ele vindo em minha direção. Me assustei um pouco, porque há quem diga que ele não bate muito bem das ideias.
   - Garota! – Ele falou me barrando no meio da calçada, com um sorriso terno, e olhar amoroso. – Jesus te ama, e tem cuidado de ti, Ele tem um grande propósito na tua vida, não esqueça disso, Ele pode curar as tuas feridas.
   E terminando de falar essas palavras, ele se afastou e seguiu caminhando. Eu fiquei sem reação. Por que exatamente no meio de tanta gente ele resolveu parar a mim? E por que falou aquilo? As pessoas tinham razão, o tal Julio era mesmo meio louco. Ou não. "Feridas"... quem falou pra ele que eu tinha feridas? Aposto que foi alguém tentando me pregar uma peça, que brincadeira de mal gosto!
   Eu nunca fora religiosa, nem sabia ao certo se existia algum "deus" acima de nós.
   Segui meu caminho até o mercado. 10h15 no relógio. Para a minha sorte o mercado estava vazio. Fui até o setor de frios com o passo bastante acelerado, peguei o bacon e corri mais um pouco até o caixa rápido. Tinha apenas uma pessoa na minha frente na fila, mas não demorou muito para que chegasse a minha vez. Paguei, e saí em disparada, com o passo apressado e desajeitado, sem prestar atenção em nada, com meus fones de ouvido no último volume. Caminhei olhando pra baixo para que me concentrasse mais em caminhar rápido do que em qualquer outra coisa. Até que um par de all stars iguais aos meus me barraram no caminho. 
   - Olá garota que estava apressada na fila do setor de pagamentos. Lembra de mim? - Seu jeito gentil e aberto, me lembrava aqueles galanteadores dos filmes ilusórios da Disney, tinha um jeito extrovertido que notava-se só no olhar. Naquele instante, esqueci até mesmo da pressa.
   - Claro que sim, o garoto gentil que me deixou passar na sua frente na fila. – Na arte de ser sem jeito, eu reinava.
   - Victor Mansfield, muito prazer. – Ele segurou a minha mão e deu beijo leve, imitando de um jeito despojado os antigos cavalheiros. – E o seu nome senhorita?
   - Natalie Lewis, muito prazer. - Sentia o tom vermelho voltando para o meu rosto, mas sorri.
   - Bom Natalie, espero que possamos nos esbarrar mais vezes. – Me deu um beijo no rosto. – Até mais.
   - Tchau Victor.
   Ele seguiu seu caminho, e eu segui o meu, mas agora num ritmo desacelerado dando espaço para os pensamentos. Sorri com a sensação de que o rosto do tal rapaz é que tornara o dia diferente. Ele era um pouco cara de pau (no bom sentido), e tinha um olhar de menino levado marcante. Gosto de pessoas caras de pau, me fazem lembrar o meu pai, ele tinha essa característica como ninguém. Uma qualidade que eu não havia herdado. Herdei apenas a sua ironia bem humorada.
  Quando olhei no relógio, percebi que já eram 10h25. Saí correndo no sentido mais literal da palavra, feito louca. Cheguei em casa já eram 10h40. Minha mãe estava na cozinha rindo frouxamente.
   - Estás dez minutos atrasada.
   - Mãe eu fiz o possível para chegar na hora. – Disse ofegante, apoiando as mãos nos joelhos.
   - Eu sei que fez, agora vem me ajudar com o almoço.
   Assim o fiz, lavei as mãos e me aproximei da pia da cozinha. Não prestava atenção em nada, tudo o que conseguia pensar era naquele rosto. Victor Mansfield. Sobrenome inglês. Cavalheirismo e gentileza inglesas, cara de pau americana. E eu não sabia nada a seu respeito, além do nome.
   - Natalie... Natalie... NATALIE!
   - Ai, o que foi mãe? – Levei um susto, mas acordei dos devaneios.
   - Não estás prestando atenção em nada do que eu falo, acorda filha, no que você pensa tanto?
   - Apenas pensando mamãe, não posso?
   - Pode, mas não enquanto está me ajudando. Ai quer saber, pode deixar que eu faço sozinha, você está muito distraída hoje. - Disse em tom de impaciência.
   Fiquei quieta e fui para o meu quarto. Me joguei na cama de maneira que o colchão de molas não se conteve em anunciar estrondosamente a minha queda sob o mesmo. Abracei uma almofada, olhei para o  “nada” e pus-me a pensar em tudo. De alguma forma aquele garoto havia despertado uma parte desconhecida da minha mente...   
   O almoço estava cheirando bem, muito bem.
   - Natalie vem almoçar! Já pus a mesa, seu irmão já está se servindo, é bom você vir logo se não quer ficar sem comida!
   - Estou indo mãe! - Gritei me dirigindo à cozinha.
   - Oi pirralho.
   - Oi Nat.
   Mesmo ao comer, minha mente não se desligava.
  - Mãe, a Nat está estranha. - Disse John com cara de desdém.
  - É, e os olhos dela estão brilhando ou é impressão minha? – Mamãe e seu sorriso de canto pretensioso.
   - Sim estão brilhando, ouvi dizer por aí que quando os olhos de uma pessoa brilham é porque está gostando de alguém. – John e sua inocência típica.
   - Você está certo.
   Eles ainda não haviam percebido que eu já havia voltado à realidade, o que é estranho já que aparentemente eles eram tão perceptivos.
   - Se ainda não perceberam eu estou bem aqui, e sim eu estou gostando de alguém... – Fiz uma pausa dramática, fazendo eles acreditarem por alguns segundos que eu falaria qualquer coisa comprometedora. - De você seu pirralho chato. – Disse apertando as bochechas de John. – Eu só estou pensativa, já que amanhã começam as aulas novamente, não sei o que esperar do meu último ano na escola.
   - Sempre soube que você me ama. Minha beleza é irresistível.
   - Pra um moleque de dez anos, você está bem convencidinho.
   - Desde que entrou na escola não tenho mais controle sobre essa boquinha. – Disse minha mãe sorrindo. – Está virando um homenzinho, e nem quer mais que eu dê beijinho antes de dormir.
   - Eu sou um homem, – Disse John, confiante em sua afirmação, fazendo a cara mais máscula que podia. – e beijinho antes de dormir é coisa de bebê.
   - Eu tenho dezesseis anos e ainda gosto quando a mamãe me dá beijinho antes de dormir.
   John ficou calado como se pensasse no que eu havia acabado de falar.
   Terminamos de almoçar, e eu fui assistir alguns seriados com ele. Olhei para o relógio, e parecia que ele não girava. Tédio. Eu estava sendo tomada pelo tédio. Era como se eu quisesse estar em outro lugar fazendo outra coisa. Era como se eu quisesse estar novamente em frente ao Victor.
   Ao crepúsculo fiz o que eu mais gostava. Fui ver o meu verdadeiro melhor amigo. O mar. Ele não precisava falar nada, apenas o som de suas ondas glamurosas se esparramando sobre a costa, já era o suficiente para que eu me acalmasse. As pessoas iam a praia nos dias quentes de verão, pra aproveitar as férias tomando banho de sol e de mar exibindo seus corpos dentro de trajes de banho. Mas eu era diferente. Eu gostava de visitar o mar ao anoitecer para observá-lo sob os reflexos furta-cores pintados no céu. Era ali, sentindo a brisa tocar suavemente o meu rosto que eu ficava quando precisava fugir da vida, e apenas refletir. Era ali que eu me acalmava em meio ao desespero. A solidão nunca me incomodara. Sozinha eu me resolvia e sozinha, sozinha me bagunçava, e sozinha admirava o mar. Mas essa minha última visita teve um tom mais intenso de melancolia. Fiquei imaginando se algum dia estaria nos braços de alguém especial, admirando a mesma paisagem. E tive a plena certeza que se um dia levasse alguém ali ao crepúsculo, essa pessoa significaria muito pra mim.
   Quando estava escurecendo demais, voltei pra casa para que mamãe não ficasse preocupada. Cheguei em casa e tudo voltou ao normal, voltei a vida preocupante e estranha que levava. 
    Fui pro meu quarto e tentei ler um pouco, mas até isso que era uma das coisas que eu mais adorava fazer, não conseguia. Deitei cedo, mas só deitei, porque dormir eu também não conseguia de jeito nenhum. Pensei, virei inúmeras vezes na cama, até que enfim peguei no sono, e dormi profundamente, ou como minha mãe diria, dormi como uma pedra. Sei lá se pedras dormem, mas se dormissem, eu estava dormindo feito uma.

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